Flagrantes da Mutação
Cada vez mais rápido mudam nossa rotina de vida, as coisas, os relacionamentos, as máquinas ao nosso dispor, a informação que nos invade sem pedir licença. Consequentemente, mais rápido mudam nossos entretenimentos, nossa apreciação da beleza e nosso modo de agir.
Os livros, a poesia e as artes estáticas têm sido relegados a um segundo plano. No gosto geral de uma sociedade cada vez mais uniforme, foram superados por filmes e jogos eletrônicos, em que a incrível sucessão dos frames simula a ação que não praticamos, a violência e o choque, enquanto a mídia nos hipnotiza e nos mantém na indolência.
Tentando documentar e comunicar a vida, passei anos escrevendo, tirando fotos e tentando pinturas nas mais diversas técnicas. Passou-se o tempo e vi tudo isso obsoleto. Pintei de novo por cima do que havia feito.
As técnicas que antes usava juntaram-se todas na arte digital, onde meu espírito inquieto alegrou-se com a riqueza das possibilidades. Não preciso mais molhar papel para aquarela, esperar camadas de óleo secarem, nem transformar minha casa num ateliê de marcenaria para repetir serigrafias. Muito menos me esforçar pela xilogravura. Dou vivas ao undo, quando desfaço dezenas de traços afoitos até encontrar o efeito que procuro.
O redemoinho da vida moderna, que há pouco atrás me levava de avião a conhecer outras culturas, civilizações e outras gentes, hoje me traz o mundo inteiro, quase sem limites, a meio metro dos olhos. Visito aqui todos os museus do mundo, clico ali e leio a vida dos outros.
E aí eu vou.
Embora, é claro, nenhuma experiência virtual substituirá jamais a realidade. Principalmente se pensarmos na arquitetura.
Gaudi, o arquiteto, meu grande inspirador, alçou-se aos limites da matéria e do entendimento de seu tempo. Sua obra é viva como os organismos vivos. As experiências da arte, que realmente me marcaram, além do choque de ver Van Gogh no original o deslumbramento com o gótico francês, foi visitar Barcelona. E nenhum Google Earth alguma pode trazer tais impressões.
De saída, o Palau de la Música Catalana, de Domènech Montaner, brinda os turistas com um espetáculo de música e poesia entre paredes e tetos bordados e esculpidos à perfeição. Sem me estender demais, cada visita às obras de Gaudi, onde o "fora" se une com o "dentro" em sua organicidade ao mesmo tempo simples e complexa, e seus cuidados com os detalhes, mostram a possibilidade da paz, do respeito e da beleza inundarem o mundo certo dia.
Já não me contento em pintar sobre o que eu mesma fiz, se posso partilhar a criação, por exemplo, num mashup com Michelangelo, envolvendo o estático Davi em energia cinética, como se fotografasse o momento em que ele se prepara para se libertar da pedra e ganhar o mundo.
Descobri depois que essa espécie de criação compartilhada já existe na música, no vídeo e na web, todos somos autores.
Em meio a tal evolução, resolução ou circunvolução, comecei pintando flores e acabei diversificando, vendo a verdade única comum a toda a criação divina com a qual também, agora, procuro compartilhar. Quero apenas ser parceira de Deus...