Mãe
Mãe não existe. O que existe são dispositivos automáticos naturais, que trazem filhos ao mundo.
A esse tipo de dispositivo é atribuído pela natureza, além da função básica para a qual foi criado (ou seja, trazer filhos ao mundo), que ame incondicionalmente os filhos que traz ao mundo — o que fazem religiosamente todos os dispositivos desse tipo que ainda não tiveram seus instintos essenciais alterados e degenerados pelas experiências de inúmeros dos filhos por eles trazidos ao mundo que criaram e desenvolveram outros dispositivos paralelos, hoje essenciais e imprescindíveis ao que chama vida-no-planeta, dispositivos esses cuidadosamente mantidos em funcionamento pleno e ininterrupto por esses ou outros inúmeros filhos de dispositivos originais.
Esses novos dispositivos são diversos e variados, mas hoje em dia passaram a substituir a segunda atribuição dos dispositivos originais, ou seja, a manutenção da vida dos filhos por eles trazidos ao mundo, com tudo o que a manutenção da vida dos filhos possa significar, ou seja, desde o suprimento de suas necessidades básicas, como mamadeira-e-colo, até as influências sócio-afetivas e afetivo-culturais.
A título de esclarecimento explícito e incorruptível, a quem o possa necessitar, podemos nomear alguns dos dispositivos paralelos, hoje essenciais e imprescindíveis à vida-no-planeta: Mac Donald, Shopping Center, Celular, Internet, Carro Importado, Microondas, Motoboy e outros, já não tanto imprescindíveis pela forma exterior, mas ainda sobreviventes pelo conteúdo tácito: Televisão, VCR, DVD, Pendrive, Banda (antigamente Música), Avião, Cursos no Exterior e outras coisas assim. Existem ainda, no câmbio-negro, certos dispositivos alternativos, anátemas sociais, porém por muitos considerados os mais puros e efetivos mamadeira-e-colo artificiais: são os chamados vários-tipos-de-cigarro, vários-tipos-de-comida, vários-tipos-de-bebida e vários-tipos-de-drogas.
Diga-se de passagem, a própria primeira e fundamental função dos dispositivos originais também está sendo ameaçada por alguns poucos dos filhos por eles trazidos ao mundo, que estão tentando criar e desenvolver em laboratório outros dispositivos para sua substituição — com muitas vantagens, aliás. Entre as muitas vantagens existem duas principais: não-precisar-de-Pai (outro dispositivo natural original, pré-requisito para o funcionamento adequado da Mãe em sua primeva função) e poder-tirar-cópia-xerox-de-si-mesmo-ou-escolher-a-cara-que-terá (o que andam chamando agora de genética e clonagem). A maior vantagem, evidentemente, que decorre imediatamente daquelas duas vantagens fundamentais, é não-ter-a-quem-prestar-satisfação, o que propicia maravilhosamente — ou imagina-se hoje que ao menos possa vir a propiciar, enquanto as pesquisas estão em andamento e ainda não totalmente implantadas — uma facilidade incrível aos futuros filhos de dispositivos básicos artificiais: poder entregar-se sem empecilho algum, nem subreptícios sentimentos de remorso ou culpa, diretamente aos dispositivos paralelos anteriormente nomeados.
Ao falar em vantagens, neste segundo caso — da substituição da primeira função dos dispositivos originais — não se pode esquecer aquela de que a um filho trazido ao mundo através dos tais laboratórios ninguém jamais poderá, em hipótese alguma, faça ele o que fizer, depreciá-lo chamando-o de “filho-de-um-dispositivo-original”.
Assim, tornando a realidade atual literariamente disponível, esperamos trazer algum consolo aos dispositivos automáticos naturais, especialmente os que já trouxeram filhos ao mundo, conscientizando-os de que não são mais exatamente o que pensavam ser.
Os tempos mudaram.