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Spa


Tudo começou com a lua, na piscina. Estava no Spa e fui para a piscina no final da tarde. Não havia mais ninguém na água, apenas poucas pessoas nas cadeiras em volta. O alto-falante irradiava uma música medonha e apelativa.

Na água morna e agradável, estiquei o corpo com prazer, fiz exercícios lentos, sem conseguir escapar do ritmo que martelava meus ouvidos. Resolvi boiar. Soltei todos os músculos, meus braços se abriram naturalmente e fiquei apenas com o nariz, a boca, os joelhos e as mãos pra fora d”água. Ora fechava os olhos e deixava a água cobri-los, ora os abria fora dela e contemplava o céu. Minha respiração assumiu uma cadência própria e assim desliguei-me dos alto-falantes, ao mesmo tempo em que parecia não haver mais viva alma por lá. A água me sustentava toda, como se fosse o colo gigante da terra a me embalar. O sol se punha lentamente. Surgiu então uma lua tênue e quase transparente, entre nuvens esparsas, enquanto corvos dançavam de cá para lá, como a mostrar que a vida não acabara ainda.

A lua parecia uma renda.

Mas, pensando bem, acho que tudo começou na véspera, com outra lua.

Era já noite avançada e sentei-me ao ar livre ao lado de minha irmã, curtindo a brisa e o som de minúsculos sinos que o vento tocava nas árvores. Olhei o céu e fiquei impressionada. Apareceram nuvens roxas luminosas por entre os altos ciprestes e no meio deles, como uma rainha, a lua crescente era de um lilás perfeito.

Pensei: “Isto é um pouco bruxo e hipnotizante. Não vou olhar”.

Virei minha cadeira de costas para a lua e ficamos as duas a contemplar uma estrela única que se atrevia entre as nuvens escuras, piscando em cores alternadas. Quem sabe era um satélite artificial? Quem sabe uma nave alienígena?

Ela queria buscar o binóculo para ver melhor, mas sucumbimos ao momento e ali ficamos, espantosamente mergulhadas na paz.

Isso foi antes. O que aconteceu depois parece um sonho muito louco, como se séculos houvessem se passado.

Estávamos num espaçoso apartamento, num andar alto, a família espalhada pelos cômodos e pelas almofadas, todos conversando, durante uma refeição em que não se via a comida. O clima era alegre e amistoso, como habitual. Cada um comentava o seu dia, o que sentia, o que planejava. A decoração era móvel, predominava o vidro fumê e as linhas eram quase todas verticais. Haviam vários ambientes, todos ligados por vãos sem portas, e janelas abundavam ao redor.

De repente houve uma grande comoção. Não foi como um terremoto e nada se quebrou. No entanto, um abalo fortíssimo atingiu os nossos corações, como algo absolutamente inusitado e terrivelmente importante. Por alguns segundos — ou minutos — não conseguimos pensar ou nos comunicar. Parecia uma viagem espacial, intergalática, fantástica. Então parou.

Lembrei de olhar para a janela e os outros também o fizeram. Compreendemos tudo imediatamente. Havia sido “o momento”. No céu claro e limpo brilhavam claramente dois enormes corpos nunca vistos antes. Um bem grande, altaneiro, e um menor, que ainda assim era bem maior que o nosso sol de antigamente. Pareciam feitos de pedacinhos de espelho, refletindo luzes como em boate de luxo. Talvez fosse Júpiter com uma de suas luas. Só tínhamos certeza era de que a Terra havia sofrido uma enorme comoção e fora chegado o dia em que mudaria de órbita. Era algo já há muito sabido e esperado. Aceitamos como fato.

Daí continuaríamos nossas vidas, simplesmente. Pelas janelas viam-se diversos outros arranha-céus de vidro amarronzado e espelhos, como uma floresta habitada por civilização ultramoderna. Éramos todos muito amigos e partilhávamos de tudo, até dos pensamentos. Toda a vida que tínhamos decorria entre aqueles prédios, sem muita gravidade, sem afobação ou pressa. Realmente, era tudo muito leve.

Nos surpreendemos muito quando fatos novos começaram. Primeiro foram alguns homens, em fila, que entraram pela parede, meio zonzos. Uns continuaram e saíram pela parede oposta. Outro tropeçou e caiu atravessado na minha cama, espantado. Era Scott Fitzgerald. Mas muito jovem, não era escritor ainda. Eu o reconheci e soube que vinha de um passado agora bem distante.

Disse-lhe: “Anime-se, você vai ser um dia um escritor bastante conhecido. E sabe, aquele seu amigo que inventou dizer “Ok”? Pois bem, “Ok” é o que todos os habitantes do planeta hoje mais falam, a palavra mais difundida”.

Então notei que não haviam mais idiomas diferentes. Falávamos todos da mesma maneira e até nem precisávamos muito falar com palavras. Scott, atordoado, saiu parede afora também e sumiu.

A partir daí passou a ser usual que filas de pessoas atravessassem o espaço do nosso apartamento, vindas do passado, devaneando no tempo. Seguidamente também apareciam seres que provavelmente seriam do futuro, mas esses nós não compreendíamos — eram extremamente mutáveis e imprevisíveis.

Vimos que nós mesmos podíamos atravessar as paredes do tempo, mas não estávamos ainda acostumados e evitávamos isso. O cachorro foi — um dia sumiu e as marcas de suas patas atravessavam o tapete e terminavam no muro.

Assim passamos a viver e a conviver com estranhos fenômenos e estranhas criaturas.

Do outro lado do terraço havia uma sala com um piano. Eu quis ir tocar, mas já havia alguém lá. Enquanto ele tocava, veio alguém famoso, de antigamente, e tomou seu lugar. Ficamos só olhando. O pianista fazia surgir músicas estranhas, mas de repente tocou Chopin. Gostamos tanto, talvez pela familiaridade, que batemos palmas. Ele parecia um Beethoven louco, com os cabelos ao vento. Tocou melhor ainda quando se viu apreciado.

Logo se empolgou, levantou e passou a tocar — ou cantar? — uma música divina, num instrumento invisível que parecia haver inventado e fabricado naquele exato instante.

Fomos arrebatados e o momento parecia dissolver as linhas do ambiente ao redor, como se flutuássemos em nuvens transparentes. Ele se aproximou de mim e eu o achei tão belo! Sua boca bem delineada ficou mais nítida que o resto do rosto, convidativa. Então colei de leve meus lábios aos dele, seguindo seus movimentos e assim me ensinou a cantar. A princípio eu desafinava, e fiquei espantada com a fraqueza da minha voz. Mas, talvez pelo sopro, ele me transmitiu um poder e comecei a entoar maravilhoso canto. Descolou-se de mim e me encontrei cantando abertamente uma melodia nova e pura que todos sentiam ressoar em si. Foi lindo.

Porém, as coisas continuavam mudando e outras pessoas passavam entre nós, atravessando as paredes.

Havíamos voltado ao nosso dia-a-dia, quando um forte movimento sísmico nos fez notar que nosso prédio estava sendo rebocado como que em trilhos, por entre os outros prédios. Operários de construção e da imobiliária se agitavam ao redor, fazendo mais mudanças. Foram para a sala e o chefe deles abriu um livro espelhado com nada escrito, que dizia que o nosso contrato de locação havia terminado. Há muito não nos lembrávamos desses detalhes.

O homem disse que já era hora de pararmos de pagar aluguel e seria melhor termos um imóvel próprio. Nos entreolhamos estupefatos! Quem teria pensado nisso antes? É claro, uma casa realmente nossa, que não fosse mais rebocada daqui para lá sem aviso prévio! Isso agora parecia o céu. Decidimos que o esforço necessário valia a pena.

“São sete e quinze, minha irmã”. Ouvi o telefone tocar. A claridade entrava por entre as rendas da janela de madeira e cachorros latiam ao longe. Passarinhos cantavam e um ou outro ruído mais brusco traziam a realidade da manhã seguinte, no Spa.

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